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China e Brasil: do boom dos recursos à nova fase estratégica


21 de outubro de 2025 às 11:46 / 0 Comentários

Um grande navio de carga carregando muitos contêineresEilis Garvey

Um novo capítulo nas relações econômicas bilaterais

Nas últimas décadas, a China transformou-se de um parceiro comercial marginal — em especial nos anos 1980/90 — a um dos principais atores econômicos junto ao Brasil. Essa cooperação, que já foi basicamente exportação de matérias-primas brasileiras para atender a demanda chinesa, está agora passando por uma viragem significativa: a China está mudando sua estratégia de investimento no Brasil, diversificando setores, buscando maior presença industrial e de serviços, ao mesmo tempo em que o Brasil procura renegociar os termos dessa relação.

O histórico: da exportação de grãos e minério à dependência de baixos valor agregados

Para entender a mudança, é preciso recuar. Nos anos 2000, o crescimento acelerado da economia chinesa demandou importações massivas de matérias-primas: minério de ferro da Amazônia e de Minas, soja do Centro-Oeste, petróleo e gás, carne e outros produtos agrícolas. Conforme estudo da King’s College London, o comércio Brasil-China em 2023 atingiu cerca de US$ 159,6 bilhões, sendo que quase um terço das exportações brasileiras se destinavam à China. Porém, mais de 95% desse volume eram produtos primários – soja, minério de ferro, petróleo – enquanto as importações chinesas eram em grande parte manufaturados.

Essa estrutura gerou dois efeitos críticos para o Brasil: (1) apesar do grande volume comercial, a economia brasileira manteve-se presa à exportação de baixo valor agregado, o que limita ganhos em termos de desenvolvimento industrial e tecnológico; (2) a dependência de commodities torna o país vulnerável a choques externos (ex: queda no preço do minério ou interrupção de demanda chinesa). Já a China, por seu lado, consolidava uma proteção segura para sua demanda de recursos e moldava cadeias produtivas globais com forte presença no Brasil e na América Latina.

Paralelamente, desde meados dos anos 2000, a China começou a investir no Brasil por meio de grandes projetos de infraestrutura, energia, logística, mineração, estabelecer joint-ventures, compras de empresas ou participações. Por exemplo, o fundo bilateral China–Brazil Cooperation Fund (Fundação de Cooperação China-Brasil para Expansão da Capacidade Produtiva) foi criado em 2017 com base em US$ 20 bilhões destinados a infraestrutura e indústria.

No entanto, esse modelo também gerou críticas: o Brasil continuava exportando principalmente commodities, enquanto o valor agregado ficava fora do país; além disso, havia questionamentos sobre se os investimentos chineses estavam fomentando ou diminuindo a capacidade de industrialização local.

A nova virada estratégica: o que está mudando

Diversificação setorial, foco em tecnologia, serviços e cadeias industriais

Agora, os sinais são claros: a China está mudando o rumo — e o Brasil está buscando se posicionar melhor. Vejamos os principais aspectos dessa mudança:

  1. Aumento do volume de investimentos diretos chineses no Brasil
  • Em 2024, os investimentos diretos chineses no Brasil mais que dobraram: cerca de US$ 4,2 bilhões, um crescimento de 113% comparado a 2023.
  • No primeiro semestre de 2025, os investimentos chineses no Brasil alcançaram cerca de US$ 2,2 bilhões, posicionando o Brasil como o segundo maior destino de investimentos chineses nesse período.
  • Além disso, fusões e aquisições (M&A) com capital chinês chegaram a US$ 1,7 bilhões na primeira metade de 2025, o mais alto dos últimos oito anos na relação China-Brasil.

2.Mudança de foco: de matérias-primas para setores estratégicos e de valor agregado

  • A China está reforçando presença em energia — especialmente renováveis, transmissão elétrica, minérios estratégicos (níquel, lítio, nióbio) — e infraestrutura logística
  • Também surgem investimentos no setor industrial (automobilístico, elétricos) e agora nos serviços, o que representa uma nova etapa. Por exemplo, empresas chinesas de entrega de comida, varejo digital, cadeia de consumo estão apostando no mercado brasileiro.
  • Um novo fundo conjunto foi anunciado em outubro de 2025: o banco de desenvolvimento brasileiro BNDES vai aportar US$ 400 milhões e o banco chinês Export‑Import Bank of China (CEXIM) US$ 600 milhões, formando um fundo de US$ 1 bilhão para investir em transição energética, infraestrutura, mineração, agricultura e inteligência artificial.

3.Maior seletividade e impacto das operações

  • A China está investindo menos em operações numerosas e pequenas, e mais em poucos projetos com grande impacto estratégico — menos quantidade, maior valor. Por exemplo, em 2025, apesar de queda no número de negócios, o montante total investido teve salto de 64% ano-a-ano.
  • Exemplos notáveis incluem: investimento de ~US$ 1 bilhão da empresa chinesa de combustível sustentável em aviões, US$ 529 milhões em projetos eólicos/solar da CGN Power, US$ 1,05 bilhão da fabricante automotiva chinesa no Brasil.

4. Busca por ativos estratégicos de longo prazo

  • A China tem consolidado controle ou participação significativa em minas de níquel, nióbio, lítio — metais fundamentais para baterias, veículos elétricos e cadeia de energia de baixo carbono.
  • Ao mesmo tempo, empresas chinesas do setor elétrico (ex: State Grid Corporation of China) investem em linhas de transmissão e usinas no Brasil, reforçando presença na infraestrutura fundamental do país.

5. O Brasil procura reequilibrar e extrair valor da parceria

  • Diante dessa virada, o Brasil passa a exigir mais: participação local, cadeias de valor instaladas no país, empregos, tecnologia. Auditorias, exigências regulatórias, debates sobre soberania de recursos e controle de setores estratégicos ganharam espaço. Observa-se também maior atenção da sociedade brasileira ao tipo de investimento que se faz — se será “extrativo” ou de desenvolvimento.

Por que essa mudança agora?

Fatores internos e externos que impulsionam a nova estratégia

As razões para essa mudança de rumo em 2024-25 são múltiplas:

  • Geopolítica e tensão comercial: Com o recrudescimento da guerra comercial entre EUA e China, bem como a busca chinesa por diversificação de mercados, economias emergentes como o Brasil se tornam alvos mais atraentes. Por exemplo, após tarifas elevadas impostas pelo governo dos EUA sobre o Brasil, a China encontrava terreno mais favorável para avançar.
  • Transição energética global e demanda por metais críticos: A China precisa garantir acesso a minérios como níquel, nióbio, lítio para sua indústria de veículos elétricos e tecnologia de baterias — o Brasil possui grandes reservas desses insumos. Portanto, a presença no Brasil passa a ter componente estratégico.
  • Esgotamento ou saturação de modelos anteriores: O antigo modelo – exportação de commodities, investimentos em infraestrutura pesada – já não entregava tanto valor para o Brasil em termos de industrialização e autonomia tecnológica. Assim, há um impulso para “melhorar” a cooperação.
  • Ambiente interno brasileiro mais aberto e com novas orientações: Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva e nova orientação de política externa, o Brasil reforçou laços com a China, participou ativamente dos “BRICS” e sinalizou vontade de usar a relação para maior salto de desenvolvimento industrial.

Impactos esperados no Brasil

O que essa mudança pode significar para o país

A nova estratégia chinesa de investimentos no Brasil traz uma série de impactos — positivos, desafiadores e de risco — que merecem atenção:

Aspectos positivos

  • Aumento de capital e projetos de longo prazo: Os novos fundos, os maiores valores por operação, podem alavancar setores como energia renovável, infraestrutura, serviços e tecnologia.
  • Geração de cadeias de valor local: Se bem conduzido, há chance de que a presença chinesa inclua montagens, fábricas, empregos, inovação e parcerias industriais — algo além da mera exportação de matéria-prima.
  • Diversificação de setores: A entrada de empresas chinesas em serviços, tecnologia, automóveis elétricos, e não só em minério ou agronegócio, abre novas frentes de crescimento.
  • Possibilidade de modernização da infraestrutura: Investimentos em transmissão elétrica, renováveis, mineração sustentável, logística podem impulsionar competitividade do Brasil.

Desafios e riscos

  • Dependência de investimentos externos e assimetria de poder: Mesmo com diversificação, a China permanecerá como investidor dominante, o que pode colocar o Brasil em posição vulnerável se os termos não forem equilibrados.
  • Valor agregado ainda pode permanecer baixo: Estudos mostram que, até agora, grande parte das exportações brasileiras para a China permanece em produtos de baixo valor agregado, o que limita os ganhos industriais para o Brasil.
  • Questões de soberania sobre recursos críticos: A apropriação chinesa de partes da mineração brasileira — como nióbio e níquel — levanta debates sobre controle nacional e benefícios para a economia brasileira.
  • Pressões regulatórias, ambientais e trabalhistas: A entrada de grandes players chineses traz atenção sobre condições de trabalho, meio ambiente, impactos sociais. Exemplos já ocorreram de denúncias de trabalho análogo à escravidão em projetos de montadoras chinesas no Brasil.
  • Integração ou marginalização de fornecedores locais: Há o risco de que as empresas chinesas importem partes e insumos da China, deixando o Brasil somente com montagem final, gerando menos empregos de qualidade. De fato, já há alertas de que fábricas chinesas no Brasil ainda importam muitos componentes.

Implicações para política e diplomacia

  • O Brasil, ao fortalecer laços com a China, reforça sua inserção no “Sul Global”, nos BRICS, e busca menos dependência dos EUA e da Europa.
  • Ao mesmo tempo, isso exige do governo brasileiro uma política de atração de investimentos que combine transparência, condições equitativas, desenvolvimento local e proteção estratégica de ativos.
  • Para a China, o Brasil torna-se uma peça-chave no seu quebra-cabeça global de logística, matérias-primas, energia renovável, automóveis elétricos e serviços para a América Latina.

Exemplos recentes que ilustram a mudança

Projetos emblemáticos

  • Em 2024, a China investiu cerca de US$ 4,18 bilhões em 39 projetos no Brasil, segundo reportagem, sendo que 34% do montante foi para eólica/solar, 25% para petróleo/gás.
  • Em 2025, o fundo conjunto Brasil-China de US$ 1 bilhão (US$ 400 mi do BNDES + US$ 600 mi do banco chinês) foi anunciado para partir em 2026, com foco em energia, infraestrutura, agricultura, IA.
  • Em termos de mineração, a China avança sobre o níquel e nióbio brasileiros: empresa chinesa adquiriu mina de níquel “Barro Alto” (GO), histórico da Anglo American, o que pode colocar cerca de 50% da produção brasileira de níquel sob controle chinês.
  • No setor automotivo, a entrada da chinesa BYD no Brasil – fábrica em Camacari (BA) – mostra esse movimento de maior presença industrial. Contudo, há controvérsias trabalhistas: em 2024, 163 trabalhadores chineses foram resgatados de “condições análogas à escravidão” no local.

Serviços e consumo: a nova fronteira

Recentemente, empresas de serviços chinesas anunciaram investimentos no Brasil: por exemplo, a plataforma de entrega Meituan planejou investimento de R$ 5,6 bi e a rede de sorvetes/chás chinesa Mixue de R$ 3,2 bi para começar operações no Brasil até 2025. Esse movimento simboliza a migração de investimentos chineses para serviços de consumo e digital, não apenas manufatura ou commodities.

O que o Brasil precisa fazer para que a estratégia seja bem-sucedida

Regras do jogo, mecanismos de governança e conteúdo local

Para que essa nova fase de investimentos chineses traduza-se em ganhos reais para o Brasil — empregos, tecnologia, cadeia produtiva local, desenvolvimento sustentável — alguns pontos exigem atenção:

  • Clareza regulatória e regras de atração de investimento: O Brasil deve definir com clareza quais são os setores estratégicos, quais exigências de conteúdo local serão aplicadas, qual será a parceria pública-privada, garantindo que parte dos ganhos fique no país.
  • Negociação de parcerias com transferência de tecnologia: Na ausência disso, a instalação local pode se limitar à montagem simples, com insumos importados, e pouco ganho em know-how ou pesquisa.
  • Monitoramento das condições de trabalho, ambientais e sociais: A entrada de grandes investidores estrangeiros exige garantias de que direitos trabalhistas, meio ambiente e comunitários serão respeitados. Os casos recentes de irregularidades aqui no Brasil reforçam a necessidade desse acompanhamento.
  • Integração à economia local e às cadeias produtivas brasileiras: Deve-se prever políticas para que fornecedores brasileiros sejam incluídos, fornecedores de peças, serviços e manutenção, aumentando impacto local.
  • Garantir que a extração de recursos críticos não fique apenas exportação de matéria-prima: No caso de metais estratégicos, o Brasil pode exigir processamento local, refino ou montagem de baterias no país.
  • Planejamento diplomático e estratégico: O Brasil precisa equilibrar sua relação com a China, garantindo que não haja dependência excessiva e mantendo diversificação geopolítica. Isso será chave num mundo cada vez mais polarizado entre grandes potências.

Possíveis cenários futuros

O que esperar nos próximos anos

Diante dessa virada estratégica, alguns cenários se destacam:

  • Cenário otimista: Os investimentos chineses no Brasil transformam-se em parcerias de longo prazo, com fábricas de automóveis elétricos, baterias, hubs de energia renovável, serviços digitais, gerando milhares de empregos, promovendo transferência de tecnologia e contribuindo para a industrialização brasileira. O Brasil consolida-se como plataforma para a América Latina e aproveita sua riqueza em recursos críticos de forma mais estratégica.
  • Cenário misto: Parte dos investimentos segue o modelo ‘fácil’ de extrair recursos ou simplesmente instalar fábricas com pouca integração local. Há ganhos, mas os efeitos estruturais são limitados. O Brasil aproveita, mas não de forma plena.
  • Cenário de risco: A China domina ainda mais segmentos estratégicos, mas o Brasil recebe pouco em termos de empregos e tecnologia, continua como fornecedor de matéria-prima, perde controle democrático ou ambiental, e torna-se dependente de cadeias externas. Há pressão social, ambiental, trabalhista e política.

Qual cenário se concretizará depende bastante de como o Brasil gerenciará essa nova fase da relação.

Conclusão

A relação Brasil-China entra em um novo ritmo: não mais apenas exportação de soja, minério e compra de produtos manufaturados chineses; agora, investimentos estratégicos, diversificação setorial, serviços e maior presença industrial chinesa no Brasil. Para o Brasil, a oportunidade é grande — se souber gerenciar bem a parceria para extrair valor local, participar das cadeias produtivas e garantir desenvolvimento sustentável. Para a China, o Brasil representa um laboratório de expansão industrial, de acesso a recursos críticos e de consolidação numa rota global dinâmica.

Ficar parado ou reagir simplesmente como fornecedor de matérias-primas já não basta. O Brasil precisa colocar-se no centro da estratégia, definindo o que quer receber — e que tipo de relação com a China deseja construir. Resta ver se esse novo capítulo será de co-desenvolvimento ou de repetição do passado com nova roupagem.


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